sábado, 20 de setembro de 2014

Dissertação. Tema. Medicina Preditiva.

TEXTO 1
Paulo Roney Ávila Fagúndez é Professor de Biodireito da UFSC.
A partir da retirada dos seios de um símbolo sexual, como Angelina Jolie, passou-se a discutir a respeito desse tipo de cirurgia. Afinal, ela é necessária? Temos hodiernamente ainda uma medicina curativa que, na maioria das vezes, chega “atrasada” para “curar” as moléstias. O ideal seria termos uma medicina preventiva, como o são as medicinas do Extremo-Oriente, tais como a tradicional chinesa e a ayurvédica, da Índia. A genética tem a pretensão de dar todas as repostas para as grandes e complexas questões que são apresentadas no século XXI. Ao prever as moléstias a genética pode, de alguma forma, causar prejuízos às pessoas. O denominado aconselhamento genético contribui para a discriminação. O que a genética pode dizer é da probabilidade de se contrair determinada doença. A medicina não é uma ciência exata. A ciência há muito se afastou das certezas racionais. Afirma Heinsenberg, em um livro famoso chamado Física e Filosofia, que a denominada ciência moderna cada vez aproxima-se mais dos saberes filosóficos. Há muitas e badaladas teorias que carecem de comprovação científica, como a das supercordas, big-bang etc. A genética não implica fatalidade. Não significa que a pessoa vai necessariamente adoecer. A genética pode ser mudada. Ilze Claustiner, bioquímica sueca, afirma que dificilmente se chega a uma terceira geração saudável com esse tipo de alimentação que se adota, baseada em gorduras saturadas, cereais refinados e açúcares. Impõe-se a adoção de uma alimentação natural, integral e, se possível, orgânica. Reduzir o consumo de drogas e hormônios. Praticar atividades físicas. Combater a destruição acelerada do ambiente natural. A saúde do homem depende da natureza. Os ingleses estão preocupados com a vida que levam as pessoas. Alertam os médicos que os filhos vão morrer antes do que os país, se continuarem a ter determinados hábitos de vida. Antes da genética, temos que mudar a vida das pessoas, por meio de uma educação para a saúde. A prevenção das doenças requer uma revolução nos hábitos de vida e passa, necessariamente, pela reorganização das cidades, hoje repletas de redes de alta tensão, de antenas de radiodifusão e de torres de telefonia celular...

    TEXTO 2
O projeto genoma humano (PGH) visava mapear e sequenciar o código genético e elaborar o mapa dos genes humanos. Ainda não finalizaram o mapa. Restam alguns mistérios a desvendar, por exemplo, buscar saber quantos são os genes humanos. No entanto, em 26 de junho de 2000, em um "rito de passagem", Bill Clinton e Tony Blair compartilharam as glórias da cerimônia oficial do fim da "corrida do genoma humano". Mas por que anunciar a conclusão de investigações inconclusas? Eis uma questão ética pertinente, que precede a qualquer outra, posto que nos fornece pistas para entender temas vinculados à apropriação privada e à mercantilização da vida. Especula-se que por trás de tanta pressa está o setor biotecnológico da indústria farmacêutica no afã de impulsionar os rentáveis negócios dos "kits de diagnósticos genéticos", alicerces da medicina preditiva.
     Afinal, o que é medicina preditiva (para alguns: medicina preventiva genética) e, nela, quais as repercussões do projeto genoma humano? Em linhas gerais, medicina preditiva é, idealmente, a possibilidade de prever para: prevenir doenças passíveis de prevenção, sem discriminações; ampliar propostas de tratamentos e curas; e garantir a dignidade humana, considerando-se os contextos socioculturais. A medicina preditiva ainda é um campo repleto de incógnitas, inclusive técnicas e científicas, algumas incomensuráveis, o que a torna alvo de esperanças, desconfianças e medos. A minha percepção é que seja um caminho a se construir, visando responder aos anseios do que deve ser: a possibilidade de aumentar a qualidade de vida e minorar o sofrimento sempre, e de curar quando possível. A publicidade das benesses, a maioria hipotéticas, é ilusória; as perspectivas de diagnósticos precisos são grandes; as de curas, e até mesmo tratamentos não fúteis, são poucas – além do que o espectro é pequeno.
     A medicina preditiva, embora tenha o diagnóstico genético como o setor mais visível de suas ações, engloba a "terapia genética" de células somáticas e germinais, a clonagem, a utilização de embriões para pesquisas e resvala, inexoravelmente, em muitas de suas intervenções, às escâncaras ou com sutileza, para propósitos eugênicos. Trata-se de um campo cujo veio semântico e locus epistemológico não prescindem do reducionismo inerente à "abordagem genética", certeira ou probabilística, e das incongruências perigosas e utópicas do fatalismo genético – a idéia reducionista e equivocada de que os genes não só podem tudo como são oráculos infalíveis e se expressam e funcionam sempre sem interação ambiental. A crença no "DNA ditador" e no "gene egoísta" desvia o foco da verdade básica – o holismo da natureza – e resulta em estigmatização, invasão da privacidade, diminuição da auto-estima, aumento de preconceitos e discriminações, temas para análises apuradas, pois dizem respeito ao direito de decidir e à maternidade voluntária, essências do exercício da cidadania.
BENESSES VERSUS MALEFÍCIOS
Embora os estudos sobre o genoma humano acenem com inúmeras hipóteses de coisas boas, tais como diagnósticos mais precisos das doenças genéticas (os "kits de diagnósticos genéticos", instrumentos essenciais da "medicina preditiva") e talvez até a cura de algumas delas, cabe lembrar que as promessas de terapêuticas, armadilhas mais poderosas da mercantilização da genética, permanecerão décadas como promessas. A pesquisa sobre o genoma humano nos brindou também com ferramentas para o combate ao racismo – a consolidação da constatação de que geneticamente não há raças humanas; que a espécie humana (Homo sapiens) é uma só e que dentro da espécie a variabilidade genética impõe, como o padrão de normalidade da natureza, a realidade que cada ser humano é geneticamente único. Um conflito bioético de grande vulto é que os "kits de diagnósticos genéticos" devassam nossa intimidade, pois os genes portam a nossa história de vida: falam do passado, informam o presente e podem anunciar muito do futuro; portanto, devem ser considerados bens pessoais indisponíveis e a privacidade genética um direito fundamental a ser protegido.
     Não há perspectivas de leis/normas universais sobre genética. Considerando-se que o genoma humano é patrimônio da humanidade (Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Genoma Humano – uma recomendação ética que não tem força de lei. Unesco, 1997) e que nossos genes nos pertencem e constituem um direito do qual não devemos abdicar, sob qualquer pretexto, é legítima a perplexidade da indagação: se uma pessoa não é dona de seus genes, o que lhe restará de seu? Urge criar referenciais bioéticos universais que garantam a dignidade, a biossegurança e a vida humanas e possam enfrentar danos, discriminações e os riscos da erosão e da poluição biológicas.
     A gênese da abordagem do diagnóstico e do tratamento das doenças genéticas engloba aspectos conceituais, clínico-epidemiológicos e os impactos sociais e éticos individuais e populacionais. Estima-se em torno de 5% as doenças "genuinamente genéticas", decorrentes de determinismo genético, que independem da interação ambiental. É nesses 5% que as empresas apostam, porém há um imenso mercado para os testes genéticos probabilísticos (que apontam possibilidades, ainda que remotas, de "vir a ter" uma doença). Das 6.000 doenças genéticas passíveis de diagnósticos, apenas mil têm seus genes localizados – há testes para cerca de 800 e tratamento para algumas.
     Disponibilizar o diagnóstico genético para doenças ainda incuráveis talvez seja fonte de angústia e diminuição da qualidade de vida para muitas pessoas, e a eticidade é no mínimo questionável. Dado o caráter fatalístico da abordagem genética, cabe lembrar que falsos resultados não são incomuns, nem desprezíveis, e dependem de coleta adequada, qualidade da amostra, condições do equipamento utilizado para o exame, competência técnica e até mesmo da subjetividade de quem realiza e interpreta os resultados.
     Em vários países, os seguros de saúde e de vida cobram preços exorbitantes e inclusive excluem quem porta alguma doença/defeito genético. No Brasil, teoricamente, não há regulamentação para testes genéticos. Na prática, os seguros-saúde têm garantido o direito a não cobrir os custos de tratamentos com doenças congênitas, a não ser dependentes nascidos na vigência do seguro. Os "testes genéticos" ampliam os horizontes de exclusão dos seguros de saúde de vida e do mercado de trabalho, caso a sociedade não imponha freios às ameaças de abusos contra a privacidade genética das pessoas. A opinião de alguns bioeticistas de que as seguradoras têm o direito de saber que riscos correm, logo podem exigir testes genéticos, é em si a defesa do abuso de poder.
     Conceitualmente, os seguros são contratos de risco. Eticamente, cabe às seguradoras arcarem com o ônus e os bônus do negócio – e não invadir nossa intimidade genética para maximizar os bônus. A dimensão ética da proibição da solicitação de testes genéticos diretos e indiretos (anemia falciforme, por exemplo) pelas companhias de seguros é mensurável pelo seu caráter de defesa da cidadania em plenitude. Não basta permitir que o mercado regule e só realize "testagem genética" com a autorização da pessoa, é preciso que sejamos guardiães tanto do direito de saber como de não saber.
O DIREITO DE NÃO SABER E O DE NÃO SABER E O CONTROLE DE QUALIDADE DOS TESTES
     O diagnóstico genético pré-natal – objetivando descobrir doenças de gravidade variável – não é considerado ético, sendo proibido em muitos países. A anemia falciforme, uma anemia hereditária – a doença genética mais comum da população negra e a doença genética de maior incidência na população brasileira – é exemplar! O diagnóstico genético pré-natal de anemia falciforme é polêmico, pois a medicina fetal ainda não descobriu como "curar" um embrião/feto falcêmico. Logo, a única prescrição com grau de resolubilidade, ainda que discutível, seria a indicação do aborto. Mesmo nos países onde é legalizado, o dito aborto "eugênico", "terapêutico" ou "piedoso" é palco de debates acalorados. No Brasil, o Programa de Anemia Falciforme, do Ministério da Saúde, não oferece diagnóstico fetal para anemia falciforme. Todavia, o referido exame está disponível em serviços privados e acessível a quem se dispuser a pagar por ele.
     O diagnóstico genético pré-natal para detectar doenças sem cura, mas que não incapacitam para a vida com autonomia e dignidade e cujo desfecho provável é a indicação de abortamento, exige sérios debates no contexto das diferentes culturas. Em Cuba, o programa de anemia falciforme oferece o diagnóstico fetal e, também, o abortamento em caso de feto falcêmico – se a mãe ou o casal assim o desejarem.
     É consensual no movimento feminista e hegemônico no movimento bioético que a mulher deve ser apoiada pelo Estado quando deseja ou não ter uma prole, o que inclui a legalização do aborto, que por sua vez não significa a compulsoriedade de abortar, apenas possibilita à mulher fazê-lo no exercício do "direito de decidir sobre o próprio corpo", sem apelar para a desobediência civil. A defesa conseqüente do direito ao aborto conforme a necessidade, a consciência e a opção da mulher, independe do motivo pelo qual ela precisa interromper a gravidez; se opõe ao uso do aborto para controle ou "melhoramento" populacional e abomina a culpabilidade e a penalização de mulheres que pariram crianças tidas como "defeituosas" ou "cargas sociais".
     Bioeticistas e bioeticólogo(a)s têm alertado que no pós-desvendamento do genoma humano o epicentro da luta pelos direitos humanos seria o direito ao próprio gene, que ressoaria revitalizando antigos direitos correlatos e desnudaria o quanto é obsceno que as patentes tenham primazia sobre o direito à atenção médica, ao remédio e à vida. Foram proféticos! Lembrando a justeza da intolerância bioética, é condenável a "pregação" de cientistas que o direito ao próprio gene e o genoma humano como patrimônio da humanidade estão no plano do simbólico. Como ousam dizer que a expressão material da vida é uma miragem?

Fátima Oliveira é médica e exerce atividades na Coordenação Nacional da UBM/União Brasileira de Mulheres, no Conselho Diretor da CCR/Comissão de Cidadania e Reprodução e na RedeSaúde/Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos; diretora da SBB/Sociedade Brasileira de Bioética e conselheira do CFEMEA/Centro Feminista de Estudos e Assessoria e CNDM/Conselho Nacional dos Direitos da Mulher

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