terça-feira, 30 de setembro de 2014

LInchamentos e Sherazade: o limite do que dizer.


Sabe-se que e Brasil é um dos países em que há mais casos de linchamento. Sendo assim, reflita se erraria a jornalista que manifestou sua opinião ( até certo ponto benevolente) em rede nacional para o caso do mocinho  linchado, ferido e amarrado num poste.
Analise até onde vai o direito de manifestação de opinião por meio da mídia.  Atente para o fato de que vivemos hoje a adesão às redes sociais. 

TEXTO 1
Fabiane, 33, era mãe de duas garotas - de 12 anos e 1 ano -, esposa dedicada à rotina de casa, diarista eventual em casas de famílias e de turistas de fim de semana e religiosa.
Ela viu-se confundida com o demônio que só existia na alma fria e inconsciente da internet alimentada por algum irresponsável, paradoxalmente responsável pela fanpage "Guarujá Alerta", e no subconsciente de um povo que ainda crê ser possível reeditar a Lei do Talião – "olho por olho, dente por dente" – e o princípio bárbaro de quem imagina ser possível fazer justiça com as próprias mãos.
A raiz da tragédia vivida por Fabiane em sua morte selvagem é social, sem dúvidas, mas sua raiz é tecnológica: a internet democrática por natureza, aberta por definição, desfazedora de arranjos sociais confortáveis ao poder estabelecido por missão (afinal, dá voz igual a todos, e tem de ser assim).
A rede carece de padrões de credibilidade que definam o que é joio e trigo, como desde que o mundo é mundo se faz nos veículos tradicionais de comunicação. E que ajudem a separar joio de trigo, fazendo germinar o trigo, disseminando-o, e incinerando o joio.
O corpo disforme e conspurcado de Fabiane, jovem que surgia doce nas fotos inocentes de uma vida plácida em família, publicadas depois da tragédia por reportagens que tentaram explicar o inexplicável e resgatar o que já se alienou, tem de ser o derradeiro sinal de alerta para a sociedade brasileira: internet é capaz de matar. No caso dela, matou com requintes flagrantes de crueldade e vileza.

TEXTO 2
Esses são apenas alguns dos casos de linchamento e tentativas de linchamento ocorridos no Brasil neste ano, que lemos como se fossem episódios da violência a que já nos acostumamos. Mas, diferentes de outros crimes, os linchamentos e tentativas são formas auto-defensivas de vingança. São execuções comunitárias. É a sociedade que lincha. Revelam um persistente traço da nossa cultura, valores fundantes do que somos.
Qualquer um pode se ver subitamente envolvido num ato de linchamento. Uns com mais probabilidade, outros com menos. E pode se surpreender depois, quando confrontado com o fato consumado. É como se tivéssemos dupla personalidade, a pior elas mobilizada por uma violência insuportável e moralmente intolerável.
Esses linchamentos e tentativas são a ponta extrema e indesejável de um modo de ser que se oculta de vários modos em nosso dia a dia. Não é casual que o Brasil seja um dos países que mais lincham no mundo e não é de hoje. A palavra “linchamento” apareceu nos Estados Unidos no século dezoito. Mas nós já linchávamos no século dezesseis. Há episódios de linchamento registrados em todos os cinco séculos da história brasileira. A permanência dessa forma de justiçamento popular é indicativa da força persistente da mentalidade que a preside, da estrutura social anômica, patológica, em que se apóia, de nossas insuficiências e dilemas crônicos.
Dentre os fatores da persistência desse grave problema social estão os limites mais do que conhecidos e proclamados do acesso da massa da população à Justiça. Burocrática, lenta e até injusta na própria ineficiência, a Justiça permite assim que subsista a vendeta como forma de punição dos crimes intoleráveis, como esses que foram apontados. Justiça cara, ineficiente e elitista não educa para a prática da justiça, abrindo espaço para legitimar, aos olhos do povo, o justiçamento.
Já houve caso de linchamento em São Paulo em que os fregueses de uma padaria numa manhã se improvisaram em juízes e tribunal, capturaram um jovem delinqüente na favela próxima, acusaram-no de crimes cometidos contra a vizinhança, deram-lhe a palavra para se defender, abriram a oportunidade para despedir-se da família, ofereceram-lhe um cigarro e o lincharam ali mesmo. Uma indicação clara do que é na concepção popular essa forma de violência, uma justiça substitutiva da Justiça faltante. Mas também uma caricatura trágica do que é justiça para amplos setores da população.
Os linchamentos não ocorrem unicamente em relação a crimes gravíssimos como o estupro e o incesto que, na mentalidade popular são crimes que despojam seus autores da condição humana e por isso mesmo devem ser reparados pela eliminação cruel e coletiva do criminoso. Há linchamentos por causas banalíssimas. http://www.trela.com.br/arquivo/O-Brasil-que-lincha

Texto 3
Deixa Sheherazade falar
Só quando garantimos o livre discurso dos mais radicais em uma sociedade é que realmente expomos seus vícios
Em fevereiro, a comentarista e âncora do telejornal SBT Brasil Rachel Sheherazade se tornou uma das mais conhecidas personagens das redes sociais. “No país que ostenta incríveis 26 assassinatos a cada 100 mil habitantes”, disse no ar, “a atitude dos vingadores é até compreensível.” Referia-se aos justiceiros cariocas que acorrentaram um adolescente de rua negro contra um poste, pelo pescoço, com uma tranca de bicicleta. Qual fora escravo. A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) pediu investigação à Procuradoria Geral da República. O Sindicato de Jornalistas do Rio publicou nota de repúdio. No início de abril, quando Sheherazade saiu de férias, circulou pela imprensa o rumor de que havia sido afastada pela emissora por pressão do governo. Houve quem celebrasse. É um erro.
Sheherazade é um fenômeno da internet que provavelmente não ganharia tanto espaço noutros tempos. A baixa audiência de seu telejornal é compensada por inúmeras cópias de seus comentários, quase sempre inflamatórios, no YouTube. Muitos a defendem. Assim como muitos por ela sentem repugnância. A jornalista não faz concessões ao bom gosto: é uma radical. Mas liberdade de expressão jamais é testada pelos razoáveis, pelos moderados, pelos de bom gosto.
O principal argumento contra Sheherazade parece partir do bom senso: faz apologia ao crime. Parece bom senso. Não é. Apologia ao crime é dos argumentos mais perigosos que se pode levantar contra a opinião de alguém. Há quem defenda o livre fumo de maconha. É crime. O aborto tem defensores. Igualmente crime. Defende-se a ocupação de propriedade privada por quem precisa de moradia e não a tem. Crimes todos. As duas primeiras defesas não costumam incomodar quem é liberal ou de esquerda. A última raramente perturba a esquerda. Considerar alguns crimes defensáveis ou não tem a ver com ideologia, não com o que é razoável. Nossa ideologia, claro, sempre nos parece razoável. O inferno são os outros.
Há um excelente argumento para permitir que Sheherazade fale, por mais desagradáveis que possam ser suas opiniões. Ela representa um pedaço do Brasil. Basta passar os olhos pelas discussões na rede. Um bom naco dos brasileiros vai para além do conservadorismo: é reacionário. Talvez seja aquele quarto da população que, segundo o Ipea, considera que a roupa da mulher justifica o estupro. Seus representantes talvez sejam os que defendem abertamente os justiceiros ou fazem justiçamentos. Este é um pedaço do Brasil. Se calamos uma voz que “os compreende”, desligamos um alerta. Sem este alerta, desaparecem as vozes e os argumentos contra.
Thomas Jefferson, cuja data de nascimento foi celebrada domingo, disse que “a liberdade de expressão não pode ser limitada sem ser perdida”. Os EUA, país que ajudou a fundar, têm a legislação mais incisiva na defesa da livre expressão. Não quer dizer que seja absoluta. Mas que, antes de punir o discurso, pesam se vale o risco. Porque, a não ser que os critérios para punir o discurso sejam extremamente rigorosos, fica fácil demais. E a censura se estabelece.
Incitação ao crime é critério para punir a fala. Mas é preciso provar que um crime ocorreu causado por ela. Uma coisa é desejar a morte de alguém numa conversa de bar. Outra é clamar pela morte da pessoa, em frente a sua casa, perante uma turba em fúria. Não se pune a mensagem. Punem-se os efeitos concretos da mensagem.
Pode não parecer intuitivo, mas é só quando garantimos o livre discurso dos mais radicais em uma sociedade, à direita e à esquerda, que realmente expomos seus vícios. Só assim somos realmente livres. A internet é uma máquina de livre expressão. Que seja amplamente usada.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/sociedade/tecnologia/deixa-sheherazade-falar-12195667#ixzz2z3GLTtak

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