terça-feira, 4 de novembro de 2014

A questão indígena no século XXI




Os textos abaixo focalizam a situação complexa, vivenciada na atualidade, pelas populações indígenas brasileiras. O mito do "bom selvagem", explorado desde a Carta de Caminha, já não se sustenta mais numa sociedade em que esses povos têm suas terras invadidas pelo agronegócio, são marginalizados nas grandes cidades e assimilam valores e práticas dos não-índios.. Tendo em vista essa discussão, redija um texto dissertativo-argumentativo sobre o tema:   Índios brasileiros: como viver com dignidade no século XXI ? 





Ao desenvolver o tema, procure utilizar os conhecimentos adquiridos e as reflexões feitas ao longo de sua formação. Selecione, organize e relacione argumentos (dados, fatos, opiniões) para fundamentar seu ponto de vista. Apresente também sugestões para os problemas abordados, não se esquecendo de que elas devem ser exequíveis e demonstrar respeito aos direitos humanos. 

Estrutura recomendada:
I - Contextualize o tema + indique o(s) problema(s)
A1 - Demonstre a relevância de garantir direitos aos povos indígenas
A2 -- Discuta um ou dois desafios para se concretizar esse propósito
C - Mostre uma ou duas formas de intervenção (social e governamental) que podem ajudar a concretizar esse propósito.

Texto 1
Parece-me gente de tal inocência que, se homem os  entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm nem entendem em nenhuma crença.  E, portanto, se os degredados, que aqui hão-de ficar, aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão-de-fazer cristãos e crer em nossa  santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa  simplicidade... (Carta de Pero Vaz de Caminha. Folha de São Paulo, abr. 1999.) 

Muitas vezes vistos como "atrasados" ou como entraves à expansão econômica, os povos indígenas apontam, com seus saberes e seu modo de se relacionar com o meio ambiente, um caminho alternativo para o Brasil, diz a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, que lança coletânea de ensaios sobre o tema. Em “Índios no Brasil: História, direitos e cidadania” (Companhia das Letras), ela reúne trabalhos das últimas três décadas sobre temas como a demarcação de terras e as mudanças na Constituição. Nesta entrevista, a professora da Universidade de Chicago, convidada pelo governo federal para desenvolver um estudo sobre a relação entre os saberes tradicionais e as ciências, critica o ‘desenvolvimentismo acelerado’ da gestão Dilma e defende ‘um novo pacto’ da sociedade com as populações indígenas.
Em um ensaio da década de 1990, você já falava sobre a disputa por recursos minerais e hídricos em áreas indígenas. Acredita que essas disputas estão mais acirradas hoje?
Já na Constituinte, em 1988, esses dois temas foram centrais. Chegou-se a um compromisso, que estipulava condições para acesso a esses recursos: ouvir as comunidades afetadas e autorização do Congresso Nacional (artigo 231 parágrafo 3). A disputa não mudou, mas o ambiente político atual favorece uma nova ofensiva da parte dos que nunca se conformaram. E assim surgem novas investidas no Congresso: projetos de lei para usurpar do Executivo a responsabilidade da demarcação das terras e para abrir as áreas indígenas à mineração. Por sua vez, Belo Monte foi enfiado goela abaixo de modo autoritário: o Executivo atropelou a consulta prévia, livre e informada a que os índios têm direito, e não foram cumpridas condicionantes essenciais acordadas, por exemplo no tocante ao atendimento à saúde indígena.
No ensaio sobre a política indigenista do século XIX, você mostra como naquele momento se consolidou uma visão dos índios como povos “primitivos” que teriam por destino serem incorporados ao “progresso” ocidental. Até que ponto essa ideia persiste hoje?
Essa visão está cada vez mais obsoleta: a noção triunfalista de um progresso medido por indicadores como o PIB é hoje seriamente criticada. Valores como sustentabilidade ambiental, justiça social, desenvolvimento humano e diversidade são parte agora do modo de avaliar o verdadeiro progresso de um país. Por outra parte, no século XIX, positivistas e evolucionistas sociais puseram em voga a ideia de uma marcha inexorável da História: qualquer que fosse a política, os índios estariam fadados ao desaparecimento, quando não simplesmente físico, pelo menos social. Essa também é uma falácia que a História ela própria desmistificou: os índios, felizmente, estão aqui para ficar. A História não se faz por si, são pessoas que fazem a História, e seus atos têm consequências. Usa esse entulho ideológico quem carece de argumentos.
No ensaio “O futuro da questão indígena”, você defende a necessidade de “um novo pacto com as populações indígenas” e aponta a “sociodiversidade” como “condição de sobrevivência” para o mundo. Como define “sociodiversidade”, e o que seria esse “novo pacto”?
O Brasil não é só megadiverso pela sua grande diversidade de espécies, ele também é megadiverso pelas sociedades distintas que abriga. Segundo o censo do IBGE de 2010, há 305 etnias indígenas no Brasil, que falam 274 línguas. Essa sociodiversidade é, segundo Lévi-Strauss, um capital inestimável de imaginação sociológica e uma fonte de conhecimento. Um mundo sem diversidade é um mundo morto. E quanto ao pacto com as populações indígenas que evoco, trata-se do seguinte: os índios que conservaram a floresta e a biodiversidade até agora (basta ver como o Parque Nacional do Xingu é uma ilha verde num mar de devastação) estão sujeitos a grandes pressões de madeireiras e de vários outros agentes econômicos. Nada garante, se as condições não mudarem, que possam continuar nesse rumo. Para o Brasil, que precisa com urgência de um programa de conservação da floresta em pé, um pacto com as populações indígenas para esse fim seria essencial.
Na Rio+20, você participou de um painel sobre as contribuições dos saberes indígenas para as ciências. O que pode ser feito para possibilitar esse diálogo?
O conhecimento das diversas sociedades indígenas pode continuar a trazer contribuições da maior relevância para temas como previsão e adaptação a mudanças climáticas, conservação da biodiversidade, ecologia, substâncias com atividade biológica, substâncias com possíveis usos industriais e muitos outros. Isso já está reconhecido e posto em prática no âmbito da Convenção pela Diversidade Biológica e no Painel do Clima, por exemplo. Poder-se-ia pensar que bastaria recolher essas informações e usá-las na nossa ciência quando úteis. Mas há outra dimensão importante desses saberes, que é seu modo específico de produzir conhecimento. Essa diversidade nos permite pensar diferentemente, sair dos limites de nossos axiomas. Não se trata, como fazem certos movimentos new age, de atribuir um valor superior aos conhecimentos tradicionais; não se trata de aderir a eles. Tampouco se trata de assimilá-los e diluí-los na ciência acadêmica. A importância de modos de conhecimento diferentes é nos fazer perceber que se pode pensar de outro modo. Foi abandonando um único postulado de Euclides que Lobatchevski e Bolayi viram de modo inteiramente novo a geometria. Por isso o diálogo dos diferentes sistemas de conhecimentos entre si e com a ciência deve preservar a autonomia de cada qual. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, via CNPq, encomendou-me um estudo para lançar as bases de um novo diálogo entre ciência e sistemas de conhecimentos tradicionais. Não é simples. Mas desde já sabemos que isso implicará formas institucionais que empoderem os vários parceiros. Um projeto-piloto que está sendo planejado nesse contexto responde a uma das diretrizes da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) que faz parte do Tratado sobre Recursos Fitogenéticos. Trata-se da conservação da diversidade agrícola de cultivares de mandioca, sob a condução de populações indígenas do Rio Negro. A escolha não é por acaso. As agricultoras do médio e do alto Rio Negro conseguiram manter, criar e acumular centenas de variedades de mandioca.
Como interpreta mobilizações populares recentes em torno de causas indígenas, como aconteceu em favor dos guarani kaiowá?
Acho salutares essas mobilizações que, como já disse, são fruto de uma nova era na informação. Diante do recuo político nas questões ambiental, indígena e quilombola, há vozes que se levantam com indignação. A situação trágica dos guarani kaiowá, pontuada por suicídios de jovens, é emblemática do absurdo que seria a aplicação da Portaria 303/2012. Uma ampliação mais do que justa de suas terras — já que as que lhes garantiram não correspondem ao que determina o artigo 231 da Constituição — levaria a colocar em risco as poucas terras que têm. Os suicídios kaiowá atingem cada um de nós: somos todos kaiowá.http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/02/16/o-futuro-dos-indios-entrevista-com-manuela-carneiro-da-cunha-486492.asp

Texto 3 - Diálogos sobre o fim do mundo
Trecho de entrevista do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro à jornalista Eliane Brum no El País Brasil
Eduardo é etnólogo, professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor do “perspectivismo ameríndio”, contribuição que impactou a antropologia e o colocou entre os maiores antropólogos do mundo.
E o que é um índio?
Eduardo - O índio, ao contrário, é uma palavra que acho que só existe no plural. Índio, para mim, é índios. É justamente o contrário do pobre. Eles se definem pelo que têm de diferente, uns dos outros e eles todos de nós, e por alguém cuja razão de ser é continuar sendo o que é. Mesmo que adotando coisas da gente, mesmo que querendo também a sua motocicleta, o seu rádio, o seu Ipad, seja o que for, ele quer isso sem que lhe tirem o que ele já tem e sempre teve. E alguns não querem isso, não estão interessados. Não é todo mundo que quer ser igual ao branco. O que aconteceu com a história do Brasil é que foi um processo circular de transformação de índio em pobre. Tira a terra, tira a língua, tira a religião. Aí o cara fica com o quê? Com a força de trabalho. Virou pobre. Qual foi sempre o truque da mestiçagem brasileira? Tiravam tudo, convertiam e diziam: agora, se vocês se comportarem bem, daqui a 200, 300, 400 anos, vocês vão virar brancos. Eles deixam de ser índios, mas não conseguem chegar a ser brancos. Pessoal, vocês precisam misturar para virar branco. Se vocês se esforçarem, melhorarem a raça, melhorarem o sangue, vai virar branco. O que chamam de mestiçagem é uma fraude. O nome é branqueamento. E é o que estão fazendo na Amazônia. É re-colonização. O Brasil está sendo recolonizado por ele mesmo com esse modelo sulista/europeu/americano. Essa cultura country que está invadindo a Amazônia junto com a soja, junto com o boi. E ao mesmo tempo transformando quem mora ali em pobre. E produzindo a pobreza. O ribeirinho vira pobre, o quilombola vira pobre, o índio vai virando pobre. Atrás da colheitadeira, atrás do boi, vem o programa de governo, vem o Bolsa Família, vem tudo para ir reciclando esse lixo humano que vai sendo pisoteado pela boiada. Reciclando ele em “pobre bom cidadão”. E aí a Amazônica fica liberada...
Como enfrentar isso?
Eduardo – Se você olhar a composição étnica, cultural, da pobreza brasileira, você vai ver quem é o pobre. Basicamente índios, negros. O que eu chamo de índios inclui africanos. Inclui os imigrantes que não deram certo. Esse pessoal é essa mistura: é índio, é negro, é imigrante pobre, é brasileiro livre, é o caboclo, é o mestiço, é o filho da empregada com o patrão, filho da escrava com o patrão. O inconsciente cultural destes pobres brasileiros é índio, em larga medida. Tem um componente não branco. É aquela frase que eu inventei: no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. Então, em vez de fazer o pobre ficar mais parecido com você, você tem que ajudar o pobre a ficar mais parecido com ele mesmo. O que é o pobre positivado? Não mais transformado em algo parecido comigo, mas transformado em algo que ele sempre foi, mas que impedem ele de ser ao torná-lo pobre. O quê? Índio. Temos de ajudá-los a lutar para que eles mesmos definam seu próprio rumo, em vez de nos colocarmos na posição governamental de: “Olha, eu vou tirar vocês da pobreza”. E fazendo o quê?
Vocês afirmam que os índios são especialistas em fim do mundo. E que vamos precisar aprender com eles. No livro, há até uma analogia com o filme de Lars Von Trier, no qual um planeta chamado Melancolia atinge a Terra. Vocês dizem que, em 1492, o Velho Mundo atingiu o Novo Mundo, como um planeta que vocês chamam ironicamente de Mercadoria. O que os índios podem nos ensinar sobre sobreviver ao fim do mundo?
Eduardo – Eles podem nos ensinar a viver num mundo que foi invadido, saqueado, devastado pelos homens. Isto é, ironicamente, num mundo destruído por nós mesmos, cidadãos do mundo globalizado, padronizado, saturado de objetos inúteis, alimentado à custa de pesticidas e agrotóxicos e da miséria alheia. Nós, cidadãos obesos de tanto consumir lixo e sufocados de tanto produzir lixo. A gente invadiu a nós mesmos como se tivéssemos nos travestidos de alienígenas que trataram todo o planeta como nós, europeus, tratamos o Novo Mundo a partir de 1492. Digo "nós", porque eu acho que a classe média brasileira, os brancos, no sentido social da palavra, não são europeus para os europeus, mas são europeus para dentro do Brasil. Nós, então, nos vemos como alienígenas em relação ao mundo. Como se a gente tivesse uma relação com o mundo diferente da relação dos outros seres vivos, como se os humanos fossem especiais. Não deixa de ser uma coisa importante na tradição do catolicismo e do cristianismo. O homem tem um lado que não é mundano, um destino fora do mundo. Isso faz com que ele trate o mundo como se fosse feito para ser pilhado, saqueado, apropriado. E a gente acaba tratando a nós mesmos como nós tratamos os povos que habitavam aqui no Novo Mundo. Ou seja, como gente a explorar, a escravizar, a catequizar e a reduzir. Esta é a primeira coisa que eu acho que os índios podem nos ensinar: a viver num mundo que foi de alguma maneira roubado por nós mesmos de nós.
E a segunda?
Eduardo – Acho que os índios podem nos ensinar a repensar a relação com o mundo material, uma relação que seja menos fortemente mediada por um sistema econômico baseado na obsolescência planejada e, portanto, na acumulação de lixo como principal produto. Eles podem nos ensinar a voltar à Terra como lugar do qual depende toda a autonomia política, econômica e existencial. Em outras palavras: os índios podem nos ensinar a viver melhor em um mundo pior. Porque o mundo vai piorar. E os índios podem nos ensinar a viver com pouco, a viver portátil, e a ser tecnologicamente polivalente e flexível, em vez de depender de megamáquinas de produção de energia e de consumo de energia como nós. Quando eu falo índio é índio aqui, na Austrália, o pessoal da Nova Guiné, esquimó... Para mim, índio são todas as grandes minorias que estão fora, de alguma maneira, dessa megamáquina do capitalismo, do consumo, da produção, do trabalho 24 horas por dia, sete dias por semana. Esses índios planetários nos ensinam a dispensar a existência das gigantescas máquinas de transcendência que são o Estado, de um lado, e o sistema do espetáculo do outro, o mercado transformado em imagem. Eu acho que os índios podem também nos ensinar a aceitar os imponderáveis, os imprevistos e os desastres da vida com o “pessimismo alegre” (expressão usada originalmente pelo filósofo francês François Zourabichvili, com relação a Deleuze, mas que aqui ganha outros sentidos). O pessimismo alegre caracteriza a atitude vital dos índios e demais povos que vivem à margem da civilização bipolar que é a nossa, que está sempre oscilando entre um otimismo maníaco e um desespero melancólico. Os índios aceitam que nós somos mortais e que do mundo nada se leva. Em muitos povos indígenas do Brasil, e em outras partes do mundo, os bens do defunto são inclusive queimados, são destruídos no funeral. A pessoa morre e tudo o que ela tem é destruído para que a memória dela não cause dor aos sobreviventes. Acho que essas são as coisas que os índios poderiam nos ensinar, mas que eu resumiria nesta frase: os índios podem nos ensinar a viver melhor num mundo pior.
Para ler a entrevista completa: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/29/opinion/1412000283_365191.html

Texto 4: Índio urbano
Luis Xipaia, de 36 anos, é o cacique de Tukajá, uma aldeia com 52 índios. Ele anda pintado apenas em ocasiões especiais, não mora em oca e fala português. Usa tênis, veste jeans, tem celular e e-mail. Seu sustento não depende só da caça e da pesca. Ele mora com a mulher e mais seis parentes em uma casa em Altamira, equipada com TV, fogão, freezer, ventilador, computador e impressora. Não tem internet. Ainda não tive condições de instalar uma antena , conta. Disponível em:

Texto 5: Cultura indígena
O esforço das autoridades para manter a diversidade cultural entre os índios pode evitar o desaparecimento de muitos costumes interessantes. Um quarto de todas as drogas prescritas pela medicina ocidental vem das plantas das florestas, e três quartos foram colhidos a partir de informações de povos indígenas. A arte se mistura à vida cotidiana. A pintura corporal, por exemplo, além de ser utilizada como enfeite, é um meio de distinguir os grupos em que uma sociedade indígena se divide. A tinta vermelha é extraída do urucum e a azul, quase negro, do  jenipapo. Para a cor branca, os índios utilizam o calcário. Os trabalhos feitos com penas e plumas de pássaros constituem a arte plumária indígena. Alguns índios realizam trabalhos em madeira. A pintura e o desenho indígena estão sempre ligados à cerâmica e à cestaria. Os cestos são comuns em todas as  tribos, variando a forma e o tipo de palha de que são feitos. Geralmente, os índios associam a música instrumental ao canto e à dança. Disponível em:  

Texto 6: DESTRUINDO NÓS MESMOS

O fim da Aldeia Maracanã
O Brasil, e o povo brasileiro em si, nunca foi muito de dar valor aos seus patrimônios históricos e culturais, muito menos as suas memórias e semióforos. Mas desta vez exageramos. Deixamos mais uma vez que interesses particulares tomassem conta de manifestações culturais coletivas. E isso é mais uma derrota a nossa memória. Saímos de campo com a sensação de que perdemos para nós mesmos.
Nesta última sexta-feira (22/03), o Batalhão de Choque da Polícia Militar do Rio de Janeiro (a mesma que entra com caveirões nos morros cariocas), amparada por uma ordem judicial, tomou o antigo prédio do Museu do Índio, no bairro do Maracanã. No local existia a Aldeia Maracanã, onde índios ainda tentavam reviver os ideais de Darcy Ribeiro, antropólogo e fundador do Museu, que gostaria de ver o melhor convívio possível entre os índios e os “homens brancos”. A justiça determinou a tomada do local como parte da implantação de melhorias no entorno do Estádio do Maracanã, que vai receber a Copa do Mundo da FIFA de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Segundo o governador do Rio, Sérgio Cabral, no local vai ser construído o Museu do COB (Comitê Olimpico Brasileiro). Pergunta-se então: qual valor cultural é mais importante para a história do Brasil, a dos Índios, primeiros moradores deste local, ou das medalhas de atletas? Decidiu-se pela segunda opção.


O antigo Museu do Indio no bairro do Maracanã - Imagem: O Globo

O nome Maracanã vem do tupiMaraka´nã, que significa papagaio. Ali onde o Museu foi construído era considerado um solo sagrado pela Aldeia Maracanã, a mesma que deu nome ao rio que passa por ali, à avenida, ao bairro e ao estádio. Os índios possivelmente ali ainda viviam em forma de demonstração de que tudo pode mudar ao seu redor, mas não o meio em que eles vivem. Um caso de resistência mesmo. Tudo estava ali antes mesmo do Rio de Janeiro existir, muito antes de se pensar em estádio e Copa do Mundo. Ali foi construído um sonho de se preservar a memória do índio, para que a nossa sociedade pudesse ter conhecimento (ou se dar conta!) de que muito de nós são eles. Muitos de nossos hábitos, palavras, costumes e culturas são indígenas. Mesmo isso parecendo tão evidente e tão óbvio foi necessária a construção de um local de memória para que se pudesse preservar e tomar conhecimento disso. Mas perdemos mais uma. Além das tantos arrancados de suas tribos amazônicas, vemos mais uma invasão típica dos portugueses do século XVI, às tribos contrárias aos ideais da metrópole. Agora só falta chegar os jesuítas para catequizá-los.
Alguns argumentam que o prédio estava abandonado e que o Museu já tinha se transferido para um palacete no bairro de Botafogo, e que agora os índios vão para outro local determinado pela prefeitura. Mas será que ninguém percebe a relação que os índios têm com o lugar em que vivem? Que na verdade são parte da natureza e do meio em que sobrevivem? Sociedades e tribos não foram feitas para que se fique mudando-as de lugar, e sim para serem preservadas como pertencentes a nossa sociedade, ao nosso passado.
O Rio de Janeiro, não o único, mas ótimo exemplo, tem se mostrado o mais truculento de todos em relação a essas “acomodações” para os jogos. Em muitos casos parece-se com a política higienista do começo do século XX, onde várias pessoas foram expulsas do centro da cidade para dar lugar a grandes avenidas e passeios para a nova alta sociedade: a republicana, com grandes ambições de ser nobreza. Essas pessoas, expulsas, podem ser vistas através de seus ascendentes morando no alto dos “pacificados” morros cariocas.
Até quando será que vamos admitir que pessoas determinem o que deve e o que não deve ser preservado como patrimônio e memória do Brasil? Mais um projeto arquitetônico vai ser demolido, mais uma tribo vai ser arrancada de seu local de origem, mais uma cultura vai ser massacrada, e mais uma vez não vamos fazer nada. O progresso é sempre mais importante, desenvolve, enriquece e também esquece. E mais alguém vai ser esquecido e vai ser lembrado apenas no dia 19 de abril, quando as tias das escolinhas vão pintar as caras das crianças para “comemorar” o dia do índio. Parabéns a todos nós brasileiros por mais esta demonstração de “ordem e progresso”.
Termino com uma frase do próprio Darcy Ribeiro, criador do Museu:
"Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando, lutando, como um cruzado, pelas causas que comovem. Elas são muitas, demais: a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária...”. Parecem-me causas cada dia mais utópicas.
P.S.: Por favor, avisem a Coca-Cola de que ela esqueceu-se de colocar em sua propaganda que, apesar de ser a copa de todo mundo, os Índios da Aldeia Maracanã não foram convidado


Frase Emblemática no interior do Prédio - Imagem: Eduardo GM de Castro


Texto 7: Tutela nunca mais
Autodeclaração é a maior conquista recente dos indígenas, mas eles são vistos ainda como entraves para o progresso
Clarice Cohn
Os índios brasileiros não verão a chegada do século XXI. Assim previa o antropólogo Darcy Ribeiro, enquanto escrevia Os índios e a civilização (1970). A profecia do indigenista não se concretizou. Ao contrário: é crescente a presença demográfica e política dos povos indígenas brasileiros. O que teria acontecido?
Não foi um erro de Darcy. Em sua obra, ele fez uso das mais extensas informações estatísticas e demográficas disponíveis à época, tiradas do Serviço de Proteção dos Índios (SPI), onde trabalhava, e utilizou um moderno arsenal interpretativo para avaliar a situação. O que mudou de lá para cá foram as garantias legais que protegem esses povos, e o modo como se pensa e se reconhece hoje a própria condição indígena.
Na década de 1950, o Estado brasileiro via o índio como alvo de uma inevitável e gradativa integração à sociedade nacional. Desde o Marechal Rondon e a criação do SPI, em1910, estabeleceu-se que o papel do governo seria tornar essa marcha para a civilização a mais indolor possível. Criaram-se Frentes de Atração e Pacificação, postos indígenas nas aldeias e todo um aparato institucional para que o Estado pudesse tutelar o índio. Os indigenistas funcionários do SPI (depois Funai) deveriam garantir que essa transição se desse de modo mediado e sem violência. Ao fim, ele se tornaria um índio integrado, indistinto no meio dos demais brasileiros.
A própria ideia de tutela é uma continuidade histórica, uma resposta à difícil pergunta de qual deve ser o status dos primeiros habitantes das terras brasileiras. Trata-se de cidadãos de segunda classe, condição semelhante à dos órfãos no século XIX: ambos necessitam de um responsável perante a lei. O Estado tutor é aquele que decide pelos índios e, sob pretexto de cuidar deles, os mantém sob controle. Aquele era também o tempo em que se começava a pôr em prática a ideia de territórios indígenas, nos quais poderiam dar continuidade a seus modos de vida sob a proteção (ou o controle) do Estado. Era este também responsável por definir quem é índio ou não.
A mudança mais importante nesse quadro foi a Constituição de 1988, que reconhece o direito dos índios às suas terras e à cidadania plena. Esse avanço jurídico só pôde ocorrer por conta da mobilização indígena e de sua atuação junto a aliados na Assembleia Constituinte. Imagens da época mostram a presença maciça de representantes indígenas acompanhando os debates e a votação da nova Constituição.
O direito a terra, reconhecido como originário, evita um antigo dilema dos índios: tendo sido muitos deles obrigados, pela colonização, a se embrenharem cada vez mais para o interior, nem sempre era fácil comprovar sua ocupação histórica e tradicional. Agora se deixa de procurar vestígios da ocupação milenar para se estudar seu território atual, designando-lhes uma porção suficiente para sua sobrevivência física e cultural. “Há muita terra para pouco índio”, dizem os críticos. Ou, mais grave: “Eles estão tomando conta do território nacional”. A primeira acusação não merece crédito, em um país de latifundiários. Quanto à segunda, vale lembrar algo que muitas vezes é omitido: os territórios indígenas demarcados pelo Estado brasileiro são terras alienáveis da União, cedidas aos índios em regime de usufruto, ou seja, eles não têm a posse das terras: ganham o direito de nelas residir e fazer uso das riquezas do solo e das águas para viver.
Incorporados aos sistemas nacionais de educação escolar e saúde, os índios passaram a compartilhar direitos universais de todos os cidadãos. Têm também garantido o direito de que estes serviços respeitem suas culturas e organizações sociais e políticas. A educação indígena é regulamentada por diversas legislações, a começar pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Garante-se o direito ao ensino bilíngue, aos próprios processos de ensino e aprendizagem, à cultura e aos conhecimentos indígenas, além de poderem desenhar seus próprios currículos e rotinas escolares com gestão indígena e professores indígenas. Na prática, em sistemas de ensino engessados, isso nem sempre é tão fácil. Mas os direitos existem e demarcam as políticas.
Em linhas gerais, o mesmo vale para a saúde. Antes atendidos por um serviço da Funai, os índios agora são integrados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Como a educação escolar indígena, em muito se ganha no respeito às culturas e às práticas indígenas. Da mesma forma, a aplicação desses princípios é um desafio, assim como a formação e a contratação de pessoal especializado e a operação do sistema.
Mesmo com tantas conquistas, diversas violações aos direitos indígenas permanecem. A começar pelo direito a terra. Quando promulgada a Constituição, o Brasil teria cinco anos para demarcar todas as terras indígenas. Até hoje isso não aconteceu. E muitas terras demarcadas se transformam em uma espécie de confinamento – em especial, as áreas devassadas e ocupadas pela monocultura.
Permanece a visão de que os índios são um empecilho ao desenvolvimento nacional. Suas terras têm sido cada vez mais ameaçadas por projetos de criação de hidrelétricas, pela construção e pelo asfaltamento de estradas que cruzam suas terras, por projetos de mineração. A hidrelétrica de Belo Monte é um caso exemplar entre tantos outros, em praticamente todos os rios amazônicos. Nisso, parece que a história se repete. Darcy dizia que os índios são atingidos por algumas frentes de expansão e colonização do território: a extrativista, a agrícola e a pecuária. Entre hidrelétricas, projetos de mineração, fazendas de gado e grandes plantações de monocultura, o Brasil está sacrificando sua diversidade ecológica, biológica, social e cultural. E os índios, frequentemente, são vistos como os bandidos desta história.
Ao longo do tempo, foram superadas as dificuldades em reconhecer sua humanidade, sua liberdade (direito a não escravização) e sua capacidade (direito a não serem tutelados).
Resta, hoje, a questão das identidades étnicas.
A diversidade étnica baseia-se no autorreconhecimento e na autoidentificação. É índio aquele que se reconhece como tal, e é reconhecido por uma comunidade indígena como seu membro. Assim, evita-se o arbítrio de ter um terceiro definindo a “indianidade” de qualquer pessoa – porque se estes, como foram a Funai ou o SPI por tanto tempo, podem afirmar a identidade indígena, podem também, com frequência e de modo arbitrário, negá-la. O Brasil ratificou em 2000 a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), segundo a qual a identidade dos povos indígenas só pode ser autodeclarada – e não mais atribuída. Por isso, não há critérios fixos para definir essa identidade.
Assistimos ao que parece ser o ressurgimento de grupos indígenas. Isto se dá porque comunidades que tiveram que praticar sua diversidade cultural e étnica em silêncio e às escondidas finalmente podem vir a público, dadas as garantias legais. Por muito tempo, ser índio no Brasil significou ser reduzido às missões, escravizado, ser alvo de discriminação e até de chacinas. Diversos povos foram obrigados a abrir mão de suas línguas e de muitos costumes que eram importantes para eles. Voltam agora a afirmar sua diferença, a ver reconhecida sua identidade e a recuperar muito do que perderam.
Mas a condição de indígena só faz sentido em contraponto ao Estado nacional. Os índios são muito diversos entre si, em comum eles têm sua diferença em relação aos não indígenas. Assim, hoje todos se descobrem parte de algo que é maior do que suas identidades particulares: sua condição indígena. Dos yanomamis embrenhados na selva aos kayapós emplumados e aos indígenas do Nordeste que perderam suas línguas, todos igualmente assumem esta condição.
Não vale para eles acusações de artificialidade: não há nada que defina um índio, a não ser seu reconhecimento e o de seus pares de que ele o é. E esta é uma das maiores conquistas do Brasil contemporâneo, de que todos temos que nos orgulhar.



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